Havia outro humano para estragar a festa de um ET em Paris

Nunca tinha acontecido, há muito que se percebia que ia acontecer. Menos de um mês depois do Critério du Dauphiné que juntou muitos dos melhores corredores da atualidade, o pódio do Tour preparava-se para ser um remake desse pódio com Tadej Pogacar a vencer Jonas Vingegaard e Florian Lipowitz, o melhor do resto das outras equipas que não UAE Team Emirates e Visma-Lease a Bike. Os capítulos da luta foram diferentes, o resultado acabou por ser igual. Agora, em Paris, chegava o dia da consagração… de forma diferente.
Ao contrário do que costuma acontecer, a última etapa da Volta a França não se resumia apenas às habituais fotografias da praxe das equipas entre o copo de champanhe do vencedor virtual, com as três passagens pela zona de Montmartre a prometerem colocar em ação o bichinho de vitória de Tadej Pogacar antes da chegada aos Campos Elísios. Podia haver ainda (mais) história pelo meio: era preciso recuar mais de quatro décadas até Bernard Hinault para se encontrar um vencedor do Tour a terminar a derradeira tirada em Paris no top 3 (1982). Num dia de consagração, esse era um dos pontos de interesse em torno do extraterrestre.
“Está mais ou menos feito mas até cruzar a linha de meta em Paris tenho de continuar concentrado com a equipa. Espero que amanhã [domingo] seja um dia tranquilo. Estamos todos cansados, veremos após a primeira subida como nos sentimos e se tentamos vencer ou apenas desfrutamos”, comentara o esloveno este sábado, sem esquecer o abandono de João Almeida após queda. “Estou mesmo triste por termos perdido o João porque a sua presença tornaria a última semana um pouco menos stressante para nós. Podíamos ter aspirado a mais uma boa classificação na geral e a outra vitória nos Alpes mas nunca saberemos… O resto da equipa foi incrível desde o primeiro dia ao último quilómetro. Sem eles, este Tour seria miserável. Estou tão feliz por fazer parte deste grupo”, acrescentou o líder da UAE Team Emirates na antecâmara do final.
Apesar de ter apenas 26 anos, Pogacar preparava-se para vencer o seu quarto Tour, igualando o registo de Chris Froome e ficando apenas a uma vitória de Jacques Anquetil, Eddy Merckx, Bernard Hinault e Miguel Induráin. A isso juntava ainda mais um Giro, o que fazia com que entrasse num lote com Alfredo Binda, Primoz Roglic, Gino Bartali e Felice Gimondi com cinco triunfos em Grandes Voltas. As Clássicas, todos os Campeonatos do Mundo e os Jogos Olímpicos estarão sempre na mente do esloveno mas a distância para nomes como Eddy Merckx (11), Bernard Hinault (dez), Jacques Anquetil, Fausto Coppi, Miguel Induráin, Chris Froome ou Alberto Contador (sete) será também uma questão de tempo até ser alcançada.
As cartas estavam na mesa, sendo que as previsões meteorológicas acabaram por deitar por terra qualquer possibilidade de uma “surpresa” de última hora por assumir os tempos a 50 quilómetros da meta como os tempos que ficariam para a classificação geral, colocando assim menos “riscos” antes da primeira passagem por Montmartre e numa fase em que Lipowitz rodava com um pequeno avanço de dez segundos sobre o pelotão a par de Quinn Simmons. Ou seja, contas feitas, as primeiras movimentações mais a sério só surgiram a 40 quilómetros do final, na preparação para a primeira subida ao mítico local da capital francesa.
Julian Alaphilippe foi o primeiro a atacar na subida, Victor Campenaerts respondeu ao francês, Pogacar veio para a frente do grupo a fechar o espaço a mostrar que iria mesmo lutar pela etapa. O esloveno ainda rodou na frente mas o facto de haver mais 20 quilómetros até à subida seguinte, com passagem pelo Louvre entre outros pontos históricos de Paris, fez com que o ritmo abrandasse, permitindo que o grupo aumentasse antes de começar a chover mais com tudo o que isso trazia de riscos na subida empedrada e depois na descida. A segunda subida fez o corte definitivo, com Tadej Pogacar, Wout Van Aert, Jorgenson, Mohoric, Trentin e Ballerini a ficarem como candidatos face ao avanço de 25/30 segundos para o grupo perseguidor.
Apesar de saber que tinha apenas de terminar a etapa para conquistar a amarela, tendo em conta os tempos “fechados” a 50 quilómetros da meta, Pogacar fez questão de demonstrar mais uma vez que aquilo que lhe dá mais prazer é lutar por vitórias no ciclismo – por mais que tenha dito que estava cansado e que só queria ir para casa. Chegava a última subida do dia, com o esloveno de novo a atacar mas com todos os opositores a conseguirem segurar-se sem partir o bloco até Wout van Aert atacar e deixar Pogacar para trás, mostrando que havia mais um humano a ser melhor do que o extraterrestre além de Mathieu van der Poel. Quando nada o fazia prever, houve um outro belga a brilhar em Montmartre depois da demonstração de classe de Remco Evenepoel nos Jogos Olímpicos e a tirar ao extraterrestre a possibilidade de fechar o Tour com chave de ouro.
observador