Como ficou o programa nuclear iraniano após a guerra?

“Não se pode permitir que o Irão tenha uma arma nuclear”. Foi com estas palavras, proferidas em abril de 2016 num discurso sobre política externa durante a corrida à Casa Branca, que Donald Trump traçou a sua linha vermelha quanto ao regime de Teerão. Nove anos e duas eleições ganhas depois, a posição não se alterou. E foi com este mesmo objetivo que, na madrugada do passado domingo, os Estados Unidos atacaram as três mais importantes instalações nucleares iranianas: Fordow, Natanz e Isfahan.
Nas horas seguintes ao ataque, o Presidente norte-americano cantou vitória. “Hoje, posso relatar ao mundo que os ataques foram um sucesso militar espetacular. As instalações chave de enriquecimento nuclear foram completa e totalmente obliteradas”, declarou, numa conferência de imprensa nessa mesma noite. Ao longo dos últimos dias, Trump e a sua administração não se têm escusado de repetir, em várias ocasiões, que o ataque foi um “sucesso” e o programa nuclear iraniano está “obliterado”.
Contudo, os relatórios dos serviços secretos, tanto norte-americanos como europeus, e as avaliações da Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA) contrariam estas conclusões: os danos infligidos às instalações iranianas foram severos, mas apenas terão atrasado o programa nuclear em poucos meses. A verdade é que todas estas informações são apenas preliminares, muitas delas baseadas em imagens de satélite dos três locais atingidos. Ora, o núcleo do programa nuclear iraniano não está à superfície, mas em instalações subterrâneas, túneis e até no interior de uma montanha.
É nestas instalações que o Irão tem 408 quilos de urânio enriquecido a 60% e centrifugadoras, duas peças centrais que distinguem um programa nuclear com propósitos civis e pacíficos de um programa que tem como objetivo construir uma bomba nuclear. Apesar das declarações perentórias da administração norte-americana, vários oficiais e especialistas em questões nucleares têm ressalvado que ainda é muito cedo para perceber a verdadeira extensão dos danos. Tal como afirmou Mark Warner, senador norte-americano e membro do Comité dos Serviços de Informação no Congresso, a única forma de ter a certeza é enviando inspetores para as três localizações.
No entanto, o Irão está a considerar suspender toda a cooperação com a IAEA, o que quer dizer que o acesso às instalações não é possível. Por conseguinte, o verdadeiro estado do programa nuclear iraniano é, neste momento, um mistério. Mesmo sem certezas absolutas, serviços secretos e observadores internacionais contrariam a administração Trump e inclinam-se a afirmar que as reservas e as centrifugadoras de urânio permanecem intactas.

▲ As centrifugadoras, essenciais para construir uma bomba, estão em instalações subterrâneas
AEOI HANDOUT/EPA
A primeira avaliação que foi feita, horas depois dos ataques do passado fim de semana, foi a de Donald Trump, em conferência de imprensa. Na manhã seguinte, Pete Hegseth, secretário da Defesa, fazia uma interpretação semelhante. Porém, no seio do seu Departamento, as conclusões são outras. Um relatório da Agência de Informação de Defesa (DIA), os serviços secretos do Pentágono, apontava que as três centrais tinham sofrido apenas danos “moderados a severos”.
No entanto, os danos verificados eram apenas em instalações à superfície e em algumas entradas para as instalações subterrâneas, sem as destruir. O relatório apontava ainda que, na altura dos ataques, a maior parte das reservas de urânio enriquecido já tinham sido transferidas destas três centrais, pelo que não tinha existido impacto nas capacidades mais importantes do programa. Tendo isso conta, a conclusão final era que os ataques atrasaram o desenvolvimento de uma possível arma nuclear em menos de seis meses.
O relatório de apenas cinco páginas foi redigido no domingo e os seus conteúdos foram revelados na terça-feira pela CNN e pelo New York Times. Na quarta-feira, a principal agência dos serviços secretos, a CIA, apresentou novas conclusões: o programa nuclear tinha sido “severamente danificado” e a sua reconstrução ia demorar “anos” e não poucos meses. Este relatório incluía “novas informações de uma fonte/método historicamente confiável e preciso”, que se sobrepunham às informações recolhidas pela DIA imediatamente a seguir ao ataque, relatou o diretor da CIA, John Ratcliffe.
Não é a primeira vez que as várias agências de informação dos Estados Unidos — são 18 no total — se contradizem. Os serviços secretos já entraram em confronto sobre a avaliação de ameaças de Al Qaeda antes do 11 de Setembro, sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque em 2003 (utilizadas como justificação para a invasão) ou sobre a culpa do governo chinês na propagação do coronavírus, enumera o New York Times.
Fora dos Estados Unidos, as avaliações do ataque multiplicaram-se. A Comissão de Energia Atómica de Israel foi ao encontro das conclusões da CIA e declarou que os ataques tinham “atrasado a capacidade de o Irão desenvolver armas nucleares em muitos anos”. Já o diretor da IAEA, Rafael Grossi, foi mais contido. “Acho que ‘destruir’ é [dizer] demasiado. Mas sofreu danos enormes“, respondeu, quando questionado sobre o tema.

▲ O Presidente iraniano visita uma exposição sobre o programa nuclear iraniano
IRANIAN PRESIDENT OFFICE HANDOUT/EPA
Dentro do Irão, tal como dentro dos Estados Unidos, não houve unanimidade sobre o estado atual do programa nuclear. Na quinta-feira, depois de dias de silêncio, o Líder Supremo do Irão desvalorizou os ataques ao dizer que “não fizeram nada de significativo“. Horas depois, numa entrevista televisiva, o ministro dos Negócios Estrangeiros foi mais negativo. “As nossas perdas não foram pequenas e as nossas capacidades foram seriamente danificadas”, declarou Abbas Araqchi.
Natanz destruída, Isfahan “obliterada” e Fordow desconhecidaOs relatórios e as declarações que avaliam os impactos dos ataques norte-americanos apresentam conclusões sobre o estado do programa nuclear em geral. No entanto, é preciso considerar que este não se encontrava apenas numa localização, mas em várias, sujeitas a diferentes níveis de destruição.
A maior das três centrais é Natanz. Segundo o relatório preliminar da DIA, esta foi a instalação mais afetada pelos ataques — até porque já tinha sido alvo de ataques israelitas intensos antes de os Estados Unidos terem entrado em cena. É nesta instalação que o Irão tem o seu principal complexo de enriquecimento. Para construir uma bomba, é preciso que o urânio seja enriquecido até aos 90% — dos mais de 8 mil quilos de urânio que o Irão tem nas suas reservas, 408 quilos encontram-se enriquecidos a 60%, um valor que preocupa os inspetores internacionais, pois aproxima-se dos valores necessários para uma arma.
Jeffrey Lews, professor de Estudos Internacionais que estudou o programa nuclear iraniano, descreveu à NPR que este complexo está enterrado a pouco profundidade, pelo que “é de esperar que as salas de enriquecimento subterrâneas estejam muito danificadas”. Já sobre Isfahan, admite que Trump esteja a utilizar corretamente a palavra “obliterar”, tendo em conta que as principais instalações desta central se localizam à superfície.
Isfahan é um caso diferente, já que se trata de uma instalação focada principalmente na preparação e na conversão de urânio e não no seu enriquecimento. A preparação é, tal como o nome indica, o processo anterior ao enriquecimento, enquanto a conversão, depois do enriquecimento, permite que o urânio seja transformado em metal que pode depois ser utilizado nas armas nucleares. Ora, estas instalações estão à superfície e, segundo Marco Rubio, foram completamente destruídas nos ataques. “Nem conseguimos encontrar onde são, onde é que costumavam estar no mapa“, declarou o secretário de Estado norte-americano na quarta-feira, numa conferência de imprensa à margem da cimeira da NATO.



▲ Imagens de satélite que mostram a destruição em Natanz, Isfahan e Fordow (da esquerda para a direita)
MAXAR TECHNOLOGIES / HANDOUT/EPA
No entanto, a central que mais importava aos Estados Unidos era a de Fordow. Em primeiro lugar, porque Israel não tinha capacidade militar para infligir danos a estas instalações, localizadas debaixo de uma montanha. Por outro lado, porque a maior parte do processo de centrifugação era feito aí. Os entendimentos das diferentes partes sobre os danos dos ataques nas centrifugadoras de Fordow parece ser mais unânime: “Improvável de estar operacional”, concluiu o primeiro relatório; “inoperacional”, escreveu a Comissão de Energia Atómica de Israel; “deixou de estar operacional”, classificou Grossi na mesma entrevista.
Por último, porque Donald Trump sempre expressou o entendimento que a maior parte das reservas de urânio enriquecido se encontravam em Fordow. Mas esta análise não é universal. Richard Nephew, antigo oficial das administrações de Joe Biden e Barack Obama argumentou ao Finantial Times que as reservas estavam divididas por túneis e instalações subterrâneas entre as três centrais. Porém, depois dos ataques, a dúvida acentuou-se: onde está o urânio enriquecido?
O paradeiro desconhecido do urânio enriquecidoA Guerra dos 12 Dias, desencadeada por Israel no dia 13 de junho, esteve longe de ser uma total surpresa para o Irão, dada a escalada de tensões que ambos os Estados tinham vindo a protagonizar nos últimos meses. Nesse sentido, Teerão estava preparado e apressou-se a realocar as reservas de urânio. “[Teria sido] muito ingénuo manter o nosso urânio enriquecido nestes locais. O urânio enriquecido está intocado agora”, declarou uma fonte do regime iraniano ao Finantial Times. A mesma informação também foi transmitida por uma fonte iraniana à Reuters.
Especialistas independentes, ouvidos pela agência noticiosa, também apontam na mesma direção, citando imagens de satélite da empresa Maxar Technologies para justificar essa análise. Segundo estas imagens, entre quinta-feira e sexta-feira, véspera dos ataques, uma longa fila de veículos saiu de Fordow, uma “atividade fora do comum” na central.

▲ O Irão informou a IAEA que iria mover o urânio se se sentisse ameaçado
IRAN ATOMIC ORGANIZATION HANDOUT/EPA
Esta possibilidade foi ainda corroborada por Rafael Grossi, que explicou que os iranianos já tinham informado a IAEA que, caso se sentissem sob ameaça, iriam transferir o urânio para novas localizações — muitas delas secretas, subterrâneas e sem fiscalização dos inspetores internacionais. “Eu não sei se moveram tudo. Mas as provas apontam que estão a mover uma grande parte“, afirmou o diretor da agência esta semana.
Da mesma forma que a avaliação da administração Trump destoa dos observadores internacionais na avaliação dos danos totais do ataque, também tira uma conclusão diferente sobre a localização atual do urânio enriquecido. “Achamos que tudo o que é nuclear está lá em baixo, eles não tiraram. Achamos que os atingimos com tanto força e tão rápido que eles não conseguiram mexer-se”, declarou o Presidente norte-americano na quarta-feira, na conferência de imprensa em Haia.
Sobre as imagens de satélite de Fordow, Trump argumentou que os carros nas imediações eram apenas veículos dos trabalhadores, numa publicação na Truth Social. “Nada foi retirado. Demoraria muito, [seria] demasiado perigoso, e muito pesado, e difícil de mover”, acrescentou. Na verdade, se processado corretamente e colocado em recipientes pequenos, o urânio enriquecido cabe na “bagageira de um carro normal”, explicou Rafael Grossi.
Há ainda a hipótese de o urânio ter sido deslocado para uma base secreta, das muitas que podem existir no Irão, ou para uma nova, ainda em construção, que estará já prestes a entrar em funções, e que fica também por baixo de uma montanha: a de Kolang Gaz La.
Bomba clandestina ou acordo nuclear: qual o futuro do programa iraniano
O paradeiro incerto do urânio enriquecido coloca um enorme ponto de interrogação sobre o estado atual do programa nuclear iraniano. Mesmo que as instalações nucleares de superfície tenham sido severamente danificadas, o atraso pode ser recuperado em poucos meses desde que as reservas de urânio permaneçam em segurança. O cenário oposto é aquele que é descrito pela administração Trump: urânio soterrado, programa nuclear “obliterado” e atraso em vários anos.
Mas às informações contraditórias das várias agências norte-americanas e internacionais somam-se outras questões: existe o financiamento para empreender esta recuperação? E a mão de obra? Afinal, as mentes por detrás da componente científica do programa também foram mortas por Israel na guerra. E mesmo que as instalações subterrâneas e as reservas estejam intactas, as estradas de acesso foram completamente destruídas pelos ataques israelitas. Teerão não parece ter qualquer pressa em responder publicamente a todas estas questões. Mais: o ayatollah e o governo têm interpretações completamente diferentes.
O Irão quer manter tudo no escuro, para ter a certeza de que pode jogar o jogo diplomático de póquer sobre a extensão dos danos nas instalações e o destino das reservas de urânio enriquecido.
Sina Azodi, especialista no programa nuclear iraniano e professor na George Washington University
Sina Azodi, especialista no programa nuclear iraniano e professor na George Washington University, argumenta que esta incerteza beneficia o regime iraniano. Isto porque as imagens de satélite não são a única forma de os serviços secretos recolherem informações — isso também pode ser feito através da interceção de comunicações iranianas. “O Irão quer manter tudo no escuro, para ter a certeza de que pode jogar o jogo diplomático de póquer sobre a extensão dos danos nas instalações e o destino das reservas de urânio enriquecido”, argumentou ao New York Times.
Neste contexto, parecem emergir duas grandes hipóteses para o futuro. A primeira, é o desenvolvimento de um “programa clandestino“, como nota Ali Vaez, do think tank Crisis Group ao Finantial Times. Neste caso, o Irão poderia continuar a desenvolver o seu programa, mas longe do escrutínio internacional. O líder da Organização de Energia Atómica, Mohammad Eslami, já declarou que a “recuperação [do programa] já tinha sido antecipada e o plano é prevenir qualquer interrupção na produção ou serviços”. A este empenho em manter o programa de pé soma-se o facto de o parlamento iraniano ter aprovado a suspensão da cooperação com a IAEA, uma decisão que ainda tem de ser aprovada pelo poder executivo.
A outra hipótese é a assinatura de um novo acordo nuclear, que estava a ser negociado entre os Estados Unidos e o Irão antes de Israel ter desencadeado a guerra. Questionado sobre esta possibilidade, Donald Trump não se comprometeu, mas a prioridade de Washington é regressar à mesa das negociações, avançou a CNN, citando quatro fontes com conhecimento desses planos. Com esse objetivo em mente, os Estados Unidos deverão propor um novo encontro com o Irão a realizar-se já na próxima semana.
Os detalhes da proposta norte-americana ainda estão a ser finalizados, mas há disponibilidade para apresentar vários incentivos a Teerão, desde o levantamento das sanções, ao acesso a fundos internacionais e passando pelo financiamento, por parte dos países do Golfo, de um programa nuclear civil para produção de energia, no valor de 30 mil milhões de dólares. A única linha vermelha consistente é a mesma que Donald Trump já tinha na campanha para as eleições de 2016: o Irão não pode continuar a enriquecer urânio.
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