5 de Outubro e o mito de Zamora

O Tratado de Zamora de 1143 é um dos pilares mais instáveis do panteão da História de Portugal. Gravado no imaginário nacional como o baptismo solene da Nação, este evento não passa, no escrutínio factual, de um mito fundador forjado pela conveniência histórica. É o momento em que a astúcia política se sobrepõe à verdade documental, elevando um simples colóquio a um acto fundacional irrevogável.
Incomodamente, não existe verdadeiramente um documento oficial que ateste o dito “Tratado” com o nome e teor que a tradição lhe imputa. O que se deu em Zamora, a 4 e 5 de Outubro de 1143, foi meramente um colóquio, uma cimeira diplomática mediada pelo Cardeal Guido de Vico, legado papal. Afonso Henriques, recém-aclamado rei após a Batalha de Ourique (1139), usava o título sem que este fosse plenamente reconhecido pelo seu primo e suserano, o Imperador Afonso VII de Leão e Castela. O encontro, portanto, não foi a concessão graciosa da independência, mas sim a validação tácita e provisória de um título que já se impunha pelo ferro e pelo sangue. Afonso VII, ao reconhecê-lo como rex, encaixava-o no seu sistema imperial, mantendo-o numa relação de vassalagem superior. A manobra leonense era clara: reconhecer a realidade de Afonso Henriques para o manter sob a sua alçada nominal.
O historiador Pinto Acácio Lima é perentório ao colocar o colóquio de Zamora na perspectiva da “origem da Bula de 1179”. Para Lima, o encontro serviu para que D. Afonso Henriques demonstrasse que no Condado Portucalense, seria ele o “legítimo soberano”, desafiando não só Afonso VII, mas também os senhores feudais independentistas que “reinavam sem reino”. O rei português almejava a total independência pela via mais elevada e inatacável, a Santa Sé. Consciente de que a realeza outorgada por Leão era efémera e condicionada, Afonso Henriques procurava a dispensatio coelestis — o poder que lhe era conferido directamente por Deus, acima de qualquer monarca peninsular. Esta era a negação suprema à autoridade imperial de Afonso VII.
A realidade irrefutável é que o reconhecimento jurídico e a verdadeira soberania plena apenas chegariam em 1179, com a emissão da Bula Manifestis Probatum pelo Papa Alexandre III. Foi a Igreja, não o vizinho castelhano-leonês, quem aceitou Afonso Henriques como seu vassalo directo, consagrando o Reino de Portugal como entidade política soberana na Europa. Apesar de a Bula de 1179 ser o documento fundamental, a data de 1143 persiste como o marco da fundação. Porquê? Porque o Mito do Tratado de Zamora satisfaz a necessidade psicológica de ter um momento de génese clara e dramática, um acto de confronto bem-sucedido que forçou o vizinho poderoso a ceder. Não se trata de uma falsidade, mas sim de uma exacerbação histórica de um momento crucial. O colóquio de Zamora foi o passo táctico que permitiu a D. Afonso Henriques consolidar o seu poder; o mito foi a ferramenta que garantiu a sua imortalidade política.
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