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Christophe Ventura: "Não há guerras na América Latina, mas há dez anos é um cenário de radicalização constante."

Christophe Ventura: "Não há guerras na América Latina, mas há dez anos é um cenário de radicalização constante."

A ideia de inverter o eixo Norte-Sul, de ver o mundo político em todas as suas dimensões e de repensar a ordem mundial a partir de uma perspectiva diferente são conceitos e forças motrizes que caracterizam a carreira do ensaísta francês Christophe Ventura. Ele é coordenador editorial para a América Latina do Le Monde Diplomatique e diretor de pesquisa do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS). Em uma conversa telefônica, ele explica como a nova ordem internacional está tomando forma e o lugar que países como o nosso e os da região ocupam nessa nova ordem ou desordem internacional. É autor de Geopolítica da América Latina (Éditions Eyrolles/IRIS, 2022) e coautor, com Didier Billion, de Desocidentalização. Repensando a ordem mundial (Agone, 2023).

Ventura fará uma apresentação no evento internacional Noite das Ideias , que acontece esta semana sob o tema "O Poder de Agir". Por lá passarão personalidades argentinas e europeias das ciências sociais, da ciência política e das artes. Haverá atividades no Teatro Colón, Mar del Plata, Córdoba, Mendoza, Rosário, Santa Fé, Tandil e Tucumán. Organizado por: Institut français d'Argentine - Embaixada da França, rede de Alianças Francesas na Argentina, Fundação Medifé, rede de Centros Franco-Argentinos e governos locais. Ele falou com Ñ sobre a onda reacionária regional por telefone de Paris.

–Qual é a sua ideia de repensar a ordem mundial, expressa no seu livro Dewesternization, Rethinking the World Order , que você escreveu com Didier Billion?

–A noção de desocidentalização do mundo tem sua força e seus limites. Sua força está no fato de que nos diz algo sobre o mapa-múndi: que, fundamentalmente além dos conflitos que vivemos e que agravaram a situação, vivemos um momento em que há uma evolução da geopolítica em que a rivalidade sistêmica entre Estados Unidos e China está reorganizando o equilíbrio entre os países do Sul e os do Norte.

–Tudo acelerou com Trump?

–Nesse contexto, a aliança ocidental está se fragmentando com o retorno de Trump. No livro, falamos sobre o Ocidente como uma coalizão de interesses estratégicos de países de vários continentes, não apenas Europa e América do Norte, mas também Japão, Coreia do Sul, Israel e alguns países latino-americanos — cerca de 25 países que se identificam com uma comunidade de interesses estratégicos comuns sob a proteção máxima — se necessário — dos Estados Unidos e sua aliança militar, a OTAN. Hoje, a novidade é que o coração deste Ocidente geopolítico está falhando porque o próprio Trump quer acabar com ele, exterminá-lo ou reorganizá-lo sob um novo contrato no qual os Estados Unidos encontram liberdade total sem depender de suas alianças.

Trump participa de uma reunião bilateral com o presidente chinês Xi Jinping durante a cúpula dos líderes do G20 em Osaka, Japão, em 29 de junho de 2019. REUTERS/Kevin Lamarque Trump participa de uma reunião bilateral com o presidente chinês Xi Jinping durante a cúpula dos líderes do G20 em Osaka, Japão, em 29 de junho de 2019. REUTERS/Kevin Lamarque

–Mas nesse contexto que você descreve, como ocorre a “desocidentalização”?

–O movimento de desocidentalização tem a ver com a ideia de que estamos em uma transição para uma nova ordem mundial reorganizada pelo equilíbrio de poder em evolução entre Washington e Pequim. Essa situação deve desafiar todos os atores a entender que o que eles vão fazer terá impacto e consequências nessa dinâmica, e é um convite a pensar também nas relações internacionais interestatais fora de um único alinhamento com uma ou outra dessas duas potências do século XXI. É um convite, uma reflexão sobre a ideia de como, a partir de um pensamento, se delineia, se renova uma estratégia de não alinhamento, que não seria do século XX, mas do século XXI. Como os estados podem, em última análise, limitar a dinâmica do conflito por meio de relacionamentos mais multilaterais e por que o multilateralismo é o único caminho a seguir?

–E enquanto isso, como está se configurando o jogo político na Europa?

–Na Europa, vivenciamos a mesma dinâmica, mas em um contexto diferente. Há também uma onda de movimentos de extrema direita que também têm um componente muito anti-imigrante, com movimentos vindos do Norte da África e do Oriente Médio, muito fortemente contra os muçulmanos, que são a causa de todos os seus problemas socioeconômicos... Esses problemas são explicados pela presença de imigrantes, que representam cerca de 10% da população em todos os países. Tudo se explicaria a partir daí, e é esse ponto que explica o sucesso da extrema direita no contexto em que partidos tradicionais conservadores, de esquerda e social-democratas, aplicam a mesma política neoliberal há décadas. Em todos os países, os serviços públicos e o sistema social, que era bastante alto em nosso continente, foram enfraquecidos, e é por isso que você paga, certo?

–Qual o papel dos partidos políticos, por exemplo?

–Todos os partidos que participaram de governos na Europa nos últimos 40 anos enfraqueceram e prejudicaram as pessoas, as sociedades e a União Europeia. A construção europeia também é vista como a força motriz do neoliberalismo, de todas essas políticas fracassadas em nosso continente, e isso explica a onda e a chegada dessas forças ou seu crescimento em muitos países que nos dizem que, para resolver o problema, devemos limpar o país de sua classe política. Eles são todos corruptos, são responsáveis ​​pelo desastre que conhecemos e, além disso, em sua negligência por 50 anos, deixaram as fronteiras abertas para todos os imigrantes da África e do Oriente Médio. Eles explicam tudo assim.

Principais líderes europeus, como o chanceler alemão Olaf Scholz; Macron, o presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez; e os primeiros-ministros dos Países Baixos, Dick Schoof; da Polônia, Donald Tusk, e da Itália, Giorgia Meloni, além dos mais altos representantes da UE e da Rússia. EFE/ Pool Moncloa " width="720" src="https://www.clarin.com/img/2025/02/17/IOfm-Zth__720x0__1.jpg"> Os principais líderes europeus, como o chanceler alemão, Olaf Scholz; Macron, o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez; e os primeiros-ministros da Holanda, Dick Schoof; da Polônia, Donald Tusk, e da Itália, Giorgia Meloni, além dos mais altos representantes da UE e da Rússia. EFE/Piscina Moncloa

–Eles se transformaram, mudaram suas tendências?

–Os partidos tradicionais estão enfraquecidos, perdendo votos e sem imaginação para se relançar em sociedades que passam por crises profundas. Além disso, estamos vivendo a guerra com a Ucrânia, e é preciso dizer que há também uma certa diferença entre as avaliações dos governos e a unidade que quer se reunificar, que quer se relançar no rearmamento massivo dos países europeus contra uma suposta ameaça russa. Essa ameaça seria tão grande que exigiria a mobilização de centenas de bilhões de euros para armas em vez de investir em serviços públicos, políticas sociais, desemprego, enfim, tudo isso, para justificar, em última análise, um novo período de austeridade em todos os países europeus.

–O medo da guerra paralisa você?

–É importante ter em mente que a diferença é que nas aldeias, a maioria das pessoas queria ver o fim da guerra, e há um novo foco nisso porque as pessoas na Europa pagaram o preço dessa guerra por meio do aumento da inflação e do aumento dos preços, especialmente os preços da energia, o que também explica a ascensão da extrema direita alemã. A Alemanha fez um esforço militar bastante forte e pagou o preço pelas sanções contra a Rússia no setor energético, e agora está sendo marginalizada por Trump. É uma situação nova para esta Europa que planejava se relançar como um projeto de sociedade e civilização, e as perspectivas para a vida política europeia são muito complicadas. As classes dominantes europeias estão vivenciando a ruptura com Trump como um tipo de violência impensável para elas. Eles se sentem em estado de pânico.

–Como o senhor vê o cenário político latino-americano neste momento de, mais uma vez, grande turbulência? Como coexistem governos tão diversos como os de Milei e Bukele, de um lado, e Lula, Boric e Petros, do outro?

–O mapa político latino-americano oferece uma espécie de paradoxo. Nesse sentido, estamos falando de uma região que não passou por conflitos ou guerras de alto nível, como podemos ver na Europa, por exemplo, com a Ucrânia e a Rússia, ou no Oriente Médio ou na África. É uma região com problemas relacionados ao crime organizado e ao narcotráfico, que são produtores de violência política e social, etc. É uma região sem guerra, sem conflitos clássicos, mas com um paradoxo: é ao mesmo tempo uma região que vive uma grande onda de polarização política. É um cenário de radicalização constante que vem sendo vivenciado na América há quase dez anos. Isso me parece ser o produto de várias coisas.

Milei e o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, cumprimentam apoiadores na Casa Rosada. Foto: EFE/ Juan Ignacio Roncoroni" width="720" src="https://www.clarin.com/img/2024/10/01/bNIw2rlcd_720x0__1.jpg"> Milei com o presidente de El Salvador Nayib Bukele cumprimentam apoiadores na La Casa Rosada. Foto: EFE/ Juan Ignacio Roncoroni

–A primeira é uma situação socioeconômica crítica em que os países latino-americanos, todos com circunstâncias variadas, estão vivenciando uma taxa de crescimento lenta, um nível crescente de pobreza e uma desigualdade social ainda alta e severa. Tudo isso foi agravado pelas consequências da crise financeira global de 2008, que deixou a região com uma década muito difícil na década de 2010. No caso da Argentina, as coisas pioraram com a pandemia. Houve um declínio em todos os indicadores sociais de pobreza, informalidade, insegurança alimentar, etc. E isso forma a estrutura, digamos, de situações políticas. O que aconteceu? Acontece que em todos os países, mesmo em situações nacionais específicas, encontramos a mesma coisa. Os governos no poder, sejam de direita, de esquerda ou de centro-esquerda, não resolveram os problemas dos cidadãos. Seus problemas, acima de tudo, são sociais e econômicos. E no final isso levou a tensões e crises políticas. Depois de uma crise econômica, veio uma crise social, depois uma crise política, na qual partidos e líderes, organizações intermediárias como sindicatos e instituições locais foram rejeitados, em termos muito novos e difíceis de entender e analisar. Ao mesmo tempo, ocorreram situações de fragmentação dos campos políticos, seguidas de polarização, radicalização de atores e, por vezes, com a entrada de novos atores políticos vindos de fora do campo tradicional dos partidos tradicionais. Por exemplo, na Argentina aconteceu o que aconteceu com a chegada de Milei: ela veio de fora do peronismo e também da direita tradicional.

–Como um estranho se estabelece?

– Não se pede muito de outsiders, líderes que vêm de fora da política; eles só precisam evitar se filiar a partidos tradicionais que são incapazes, ineficazes, corruptos, etc. E, finalmente, as crises sociais e políticas não resolvidas enfraqueceram os partidos e governos tradicionais no poder. E isso me parece ser uma situação muito específica na América Latina.

Xi Jinping e o presidente do Brasil com Lula em Pequim em 13 de maio de 2025. Foto: Tingshu Wang / AP) Xi Jinping e o presidente do Brasil com Lula em Pequim em 13 de maio de 2025. Foto: Tingshu Wang / AP)

–O que resta da esquerda, o que aconteceu com os partidos?

–A situação é diferente em cada caso. Em alguns países, alguns partidos podem resistir ao poder criando novas alianças de circunstância para permanecer no poder ou se aliando contra um novo ator, como no Brasil com a vitória de Lula em 2022. Ele venceu, mas dentro da estrutura de uma coalizão muito ampla que ia da centro-direita à esquerda, uma frente democrática contra Bolsonaro na extrema direita. A mesma coisa aconteceu no Chile com Boric. Na Colômbia, um processo semelhante também resultou na vitória de Petro. São situações paradoxais dentro de coalizões muito heterogêneas e sem maioria no Congresso e, portanto, dependem de negociações em andamento, o que afeta a possibilidade de reformas para esses governos. Outros partidos de esquerda que se mantêm no poder a qualquer custo, como na Venezuela ou na Nicarágua... Temos que aceitar que na América Latina vamos viver situações com muitas variações, com muitos cenários políticos que vão mudar de um lado para o outro, e que há uma instabilidade que faz parte da normalidade. Isso abre muitas possibilidades, algumas talvez boas e talvez mais preocupantes. Veremos nos próximos meses.

–Outra questão que está ressurgindo devido às respostas negativas é a mudança climática. Por que a extrema direita nega isso? Por que não o consideram seu?

–Esse me parece ser um tema que ilustra bem o que eu queria dizer sobre o fato de que as pessoas que votam na extrema direita expressam que não há esperança em outro sistema, em outra alternativa, e que devemos aceitar a situação e resolver as coisas da melhor maneira possível, tomando uma posição firme em relação aos pobres, aos imigrantes, etc. Acho que a questão climática se enquadra nessa visão negativa. Por que a extrema direita finalmente faz parte de um movimento global que vemos como um movimento reacionário no sentido literal da palavra? É um movimento que acredita que para enfrentar uma crise não é preciso transformar uma sociedade, mas sim protegê-la e retornar ao passado. Voltando ao que foi antes, a Era de Ouro de Trump ou a ideia de poder argentino que o Sr. Milei nos conta, completamente descontextualizada por outro lado. Por fim, são correntes reacionárias também porque expressam algo de niilismo. Acho que isso é muito típico de grandes crises, de grandes mudanças na história. Aconteceu na Idade Média, por volta do ano 1000 na Europa, também durante o Renascimento. E acho que isso faz parte da visão apocalíptica e niilista que a extrema direita tem.

Pauta: "Reportar é um esporte de combate." Quando: 16 de maio, às 22h. Onde: no Salão Dourado do Teatro Colón. Inverta o eixo Norte-Sul. Quando: 17 de maio, às 17h. Onde: na Sala Dourada.

Clarin

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